Trabalhar para quem?
- Julio Cesar Picelli
- 18 de out.
- 3 min de leitura
O desejo e o Outro no ambiente corporativo

Quando o trabalho deixa de ser escolha e vira espelho
Carlos sempre foi visto como um profissional exemplar.
Pontual, comprometido, eficiente. O tipo de funcionário que não reclama e está sempre disponível.
Mas, nos últimos meses, algo começou a mudar. A energia que antes o movia foi se transformando em cansaço, e o entusiasmo deu lugar a uma sensação estranha de vazio como se, apesar de tudo, nada mais fizesse sentido.
“Eu gosto do que faço”, dizia.
Mas quando perguntado por que continuava ali, o silêncio se prolongava. Até que, um dia, ele respondeu: “Não sei… acho que eu não posso decepcionar.” Decepcionar quem? A empresa? O chefe? A família? O próprio ideal que criou de si mesmo?
Essa é a pergunta que, no fundo, atravessa boa parte de nós: para quem, de fato, estamos trabalhando?
O desejo e o olhar do Outro
A psicanálise nos ensina que o desejo não nasce no isolamento. Ele se constitui no olhar do Outro; esse Outro simbólico que representa tudo aquilo que esperamos que nos reconheça: os pais, a sociedade, o chefe, a cultura, a empresa. Lacan dizia que “o desejo é o desejo do Outro”.
Em outras palavras, desejamos ser desejados. Queremos ser vistos, validados, reconhecidos. E o ambiente corporativo, com suas métricas e rituais de aprovação, sabe explorar isso como ninguém. O crachá, o título, a meta, o bônus, o elogio, todos esses elementos funcionam como significantes de valor.
Eles alimentam a ilusão de que seremos completos quando atingirmos certo patamar.
Mas o que acontece quando o Outro (a empresa, o chefe, a estrutura) não devolve o reconhecimento esperado? Ou quando percebemos que o olhar que nos sustentava não enxerga quem realmente somos?
Aí o desejo se transforma em sofrimento.
E o trabalho, que deveria ser um espaço de realização, torna-se o palco da falta, da repetição e do esvaziamento.
A empresa como espelho e sintoma
Na prática clínica é comum ouvir frases como: “Meu chefe nunca me valoriza”, “Parece que dou tudo de mim e nunca é o bastante”, ou ainda, “Não sei mais quem sou sem esse trabalho”.
Essas falas mostram algo essencial: o trabalho ocupa, muitas vezes, o lugar do Outro, um espelho simbólico onde o sujeito busca se ver refletido, amado, reconhecido.
Só que esse espelho é instável, porque o desejo da empresa não é o desejo do sujeito.
A empresa deseja resultados, eficiência, entrega. O sujeito deseja sentido, vínculo, pertencimento. Essa diferença cria um abismo. E é nesse abismo que surge a angústia contemporânea: a tentativa de fazer caber o humano dentro da lógica da performance.
Quando o sujeito se identifica demais com o olhar do Outro corporativo, ele passa a viver para sustentar a imagem de quem acredita que precisa ser. E pouco a pouco, vai se afastando de si, até o ponto em que o desejo se cala, e o corpo começa a falar.
Trabalhar com o desejo, não para o desejo do Outro
Não há nada de errado em querer reconhecimento, estabilidade ou crescimento. Mas há perigo em confundir o desejo do Outro com o próprio.
O desafio é resgatar a autoria sobre o que se faz, e entender que o trabalho pode ser expressão, mas nunca totalidade. Trabalhar com o desejo é diferente de trabalhar para o desejo. No primeiro caso, há movimento, criação, autenticidade. No segundo, há servidão, repetição e gozo no sofrimento.
A psicanálise convida à escuta justamente para que o sujeito reconheça de onde vem seu desejo, e pare de viver apenas no reflexo do olhar alheio. Esse processo exige tempo, coragem e, muitas vezes, ajuda. Mas é por meio dessa escuta que nasce a liberdade de dizer:
“Eu escolho estar aqui — e sei por quê.”
Conclusão: o trabalho como espelho do humano
O trabalho é um palco onde o inconsciente se manifesta. É ali que o sujeito negocia, todos os dias, entre o que o sistema exige e o que o desejo pede. O problema não é trabalhar, mas se perder naquilo que o trabalho exige que você seja.
Talvez a pergunta não seja apenas “trabalhar para quem?”, mas também “quem trabalha dentro de mim quando eu trabalho?”.
E se o espelho corporativo não reflete mais o que você é, talvez seja hora de se olhar fora dele onde o desejo, finalmente, pode voltar a respirar.
Bibliografia
Freud, S. (1914). Introdução ao narcisismo. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
Freud, S. (1921). Psicologia das massas e análise do eu. In: Edição Standard Brasileira, vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
Lacan, J. (1985). O Seminário, Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.Rio de Janeiro: Zahar.
Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro: Zahar.





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