Por que repetimos o que nos faz sofrer?
- Julio Cesar Picelli
- 17 de out.
- 3 min de leitura
Quando o sofrimento se torna um velho conhecido

Ana sempre dizia que “tinha dedo podre” para o amor. Depois de três relacionamentos frustrantes, o roteiro era quase o mesmo: ela se entregava rápido demais, se anulava para agradar e, pouco a pouco, sentia-se invisível. Mesmo quando prometia a si mesma “nunca mais passar por isso”, lá estava ela novamente — envolvida com alguém que a fazia sentir a mesma dor, como se a história apenas mudasse de nome e cenário.
Já Carlos jurava que ia mudar de emprego assim que tivesse uma chance. Mas toda vez que surgia uma oportunidade, algo o paralisava. Ficava onde estava, reclamando da rotina e da falta de reconhecimento, mas incapaz de dar o passo que dizia desejar. No fundo, repetia o mesmo ciclo de frustração que vivia desde a juventude e que o fazia se sentir sempre “pequeno” diante dos outros.
Essas histórias, embora diferentes, partilham um mesmo mistério humano: por que repetimos o que nos faz sofrer, mesmo quando sabemos que vai doer?
O inconsciente não se convence pela razão
A psicanálise ensina que o sofrimento não é apenas algo que nos acontece, é também algo que, de algum modo, nós repetimos.
Lacan dizia que o sujeito é “falado pelo inconsciente”, ou seja, movido por algo que desconhece, mas que insiste em se manifestar.
É por isso que promessas racionais (“dessa vez será diferente”) não bastam. A repetição não obedece à lógica da consciência, e sim à lógica do desejo, essa força misteriosa que tenta, de forma disfarçada, reencontrar algo perdido, algo do passado que ficou sem resolução.
Ana não repetia só relacionamentos ruins; ela repetia a busca por reconhecimento que nunca teve na infância. Carlos não repetia apenas a falta de coragem; ele reproduzia, inconscientemente, o papel do menino que aprendeu a se calar para não ser criticado.
Em ambos os casos, o sofrimento era um modo de manter viva uma história inconclusa, mesmo que isso custasse caro.
A estranha satisfação de sofrer
Lacan chamou essa insistência de gozo uma espécie de prazer paradoxal que encontramos até no sofrimento. Parece absurdo, mas há um tipo de satisfação em reviver o conhecido, ainda que doa. O novo assusta; o familiar, mesmo doloroso, dá uma sensação de controle.
Por isso, repetimos o mesmo tipo de relação, de trabalho, de comportamento, não por masoquismo, mas porque o inconsciente busca reconhecer-se. E enquanto essa dinâmica não é trazida à consciência, a repetição continua, como um disco arranhado tentando tocar a mesma música até o fim.
O papel da terapia: escutar o que se repete
Na terapia psicanalítica, o trabalho não é “apagar” o passado, mas escutá-lo de um outro lugar. A fala, quando feita em um espaço de escuta verdadeira, permite que o sujeito perceba o sentido oculto de suas repetições.
O analista ajuda o paciente a ouvir o que está dizendo sem perceber. E, quando isso acontece, algo muda: o sujeito deixa de ser apenas vítima da repetição e começa a reconhecer seu papel nela. Essa tomada de consciência não vem por mágica, mas abre espaço para escolhas mais livres, escolhas que não são guiadas pela ferida antiga.
Conclusão: repetir é humano, reconhecer é libertador
Todos nós repetimos. Repetimos padrões de amor, de medo, de silêncio. Mas quando a repetição se torna sofrimento, ela está tentando nos dizer algo; algo que o inconsciente insiste em mostrar até que possamos ouvir.
A terapia psicanalítica é o lugar onde esse eco encontra escuta. É ali que podemos, pouco a pouco, compreender por que retornamos sempre ao mesmo ponto, e aprender a trilhar um caminho novo, com menos culpa e mais consciência.
Porque, no fim das contas, a repetição não é castigo, é convite para olhar o passado sem se perder nele. Convite para escrever uma nova história, onde o sofrimento já não precisa ser o protagonista.
Julio Cesar Picelli
Psicanalista Clínico | Escritor e Palestrante sobre Psicanálise, Trabalho e Sociedade
Bibliografia Utilizada
Freud, S. (1914). Recordar, repetir e elaborar. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
Freud, S. (1920). Além do princípio do prazer. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
Lacan, J. (1985). O Seminário, Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar.
Nasio, J.-D. (2013). Como trabalhar em psicanálise os momentos de sofrimento psíquico. Rio de Janeiro: Zahar.





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