Por que insistimos em trabalhar onde dói
- Julio Cesar Picelli
- 17 de out.
- 4 min de leitura
Um olhar psicanalítico sobre o sofrimento silencioso no ambiente profissional.

Marina tem 39 anos, trabalha numa grande empresa de tecnologia e, há tempos, sente um peso no peito que não passa.
Ela não odeia o que faz, mas também não sente mais prazer algum.
Cada segunda-feira parece uma repetição da anterior — reuniões intermináveis, metas inalcançáveis, conversas rasas e um vazio que a faz questionar se aquele esforço todo ainda faz algum sentido.
Mesmo assim, Marina continua:
“Não posso reclamar, tem gente em situação pior.”
“É o trabalho que paga minhas contas.”
“Não dá pra mudar agora.”
Talvez você também já tenha dito algo parecido. E, no fundo, sabe que o problema não é apenas o trabalho. É o sentido que esse trabalho perdeu — e o quanto dói reconhecer isso.
Quando o sofrimento se torna um modo de estar
A psicanálise nos mostra que o sofrimento não é só algo que acontece, mas também algo que se repete.
Lacan dizia que o sujeito é movido pelo inconsciente, e o inconsciente busca aquilo que falta, mesmo que isso signifique insistir na dor. Por isso, muitas vezes permanecemos em ambientes hostis, relacionamentos esvaziados ou rotinas adoecedoras: porque ali, de forma inconsciente, há algo familiar. Algo que, mesmo doloroso, nos é reconhecível.
O que Lacan chamava de gozo explica essa contradição, é o prazer paradoxal de repetir o sofrimento, de permanecer em algo que dói, mas que dá a sensação de “ser o que eu conheço”. Assim, ficamos presos ao que nos machuca porque temos medo de encarar o vazio que vem ao deixar o conhecido para trás.
O emprego, a empresa e o “palco da vida”
Claro que existe a realidade financeira e ela pesa. Precisamos trabalhar, pagar contas, sustentar filhos, planejar o futuro. Mas o ponto é: por que confundimos o trabalho com o sentido da vida?
O emprego, a empresa, o cargo, o crachá — são palcos, não a cena inteira. E quando esquecemos isso, começamos a viver como se fôssemos apenas o personagem de uma peça escrita por outros.
Ressignificar a posição que ocupamos na vida profissional é um passo essencial. Ver o trabalho como um dos objetos relacionais que habitam nossa vida, ao lado do amor, da amizade, da família, do corpo, da arte, da fé, permite uma relação mais saudável com ele.
Lacan dizia que o sujeito se constitui na relação com o Outro, e esses “outros”, os objetos com os quais nos relacionamos, nos oferecem tanto prazer quanto dor. O problema começa quando confundimos os papéis desses objetos, quando esperamos que o trabalho nos dê afeto, ou que o parceiro nos dê sentido, ou que o sucesso nos dê paz.
O medo de se escutar
Por trás dessa repetição, existe um medo profundo: o medo de se ouvir. De sentar em silêncio e reconhecer o que realmente está doendo. Muitos ainda acreditam que falar é fraqueza, que procurar ajuda é “não aguentar a vida”, mas, na verdade, falar é o primeiro ato de coragem. É o instante em que o sujeito começa a se reconhecer fora daquilo que o aprisiona.
A escuta, seja com um terapeuta, um amigo de confiança, ou até consigo mesmo, é um espaço de libertação. O que estava confuso começa a ganhar forma e o que era dor pode se tornar entendimento.
Os números falam, mas o sujeito ainda precisa se escutar
Os dados sobre clima organizacional revelam um cenário que não pode mais ser ignorado.
Relatórios recentes do Great Place to Work (GPTW) e do INEP/ENAP (Consultoria de Clima Organizacional, 2021)mostram que menos da metade dos profissionais brasileiros se sente verdadeiramente satisfeito com o ambiente em que trabalha.
Indicadores como reconhecimento, relacionamento com a liderança e comunicação interna apresentam níveis críticos — variando entre 30% e 40% de avaliação positiva.

Esses números comprovam que algo está estruturalmente errado nas organizações. Mas, ao mesmo tempo, revelam algo ainda mais incômodo: o quanto o próprio profissional se tornou parte inconsciente dessa engrenagem. Muitos absorvem, reprimem ou deslocam o mal-estar estrutural acreditando que o problema está apenas neles.
Outros projetam no ambiente corporativo um espelho idealizado de si mesmos, como se o reconhecimento, o status ou o sucesso profissional pudessem responder à pergunta “quem eu sou?”. Essa é a armadilha psíquica do mundo contemporâneo: confundir o objeto corporativo com o objeto de desejo.
O trabalho, nessa lógica, deixa de ser um espaço de expressão e passa a ocupar o lugar do Outro simbólico, aquele que valida, mede e dá valor. O resultado é o que vemos nas estatísticas: um exército de profissionais exaustos, emocionalmente deslocados e presos a uma identidade que depende do olhar da empresa.
Sim, há uma falha estrutural, mas também há uma fragilidade subjetiva que precisa ser enfrentada com maturidade e autoconhecimento. A psicanálise nos lembra que o sujeito só se integra à realidade quando reconhece a própria falta, o próprio limite, e deixa de buscar no trabalho o espelho de sua completude.
Um convite ao novo olhar
Talvez seja hora de olhar com mais atenção para os objetos relacionais da sua vida: o trabalho, o amor, o dinheiro, o corpo, o tempo, o desejo.
Pergunte-se:
Qual deles tem me trazido prazer?
Qual deles só me traz dor?
E por que insisto em mantê-lo assim?
Não é fraqueza pedir ajuda — é sabedoria.
Quando o peso for grande demais, peça ajuda. Quando a dor insistir em ficar, escute o que ela está tentando dizer. Porque falar e escutar libertam e talvez, ao se escutar de verdade, você descubra que o que te prende não é o mundo é a história que você ainda não teve coragem de reescrever.
Julio Cesar Picelli - Psicanalista Clínico | Escritor e Palestrante sobre Psicanálise, Trabalho e Sociedade
Bibliografia
Freud, S. (1914). Recordar, repetir e elaborar. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
Freud, S. (1920). Além do princípio do prazer. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
Lacan, J. (1985). O Seminário, Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar.
Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro: Zahar.
Nasio, J.-D. (2013). Como trabalhar em psicanálise os momentos de sofrimento psíquico. Rio de Janeiro: Zahar.
Relatórios recentes do Great Place to Work (GPTW) e do INEP/ENAP (Consultoria de Clima Organizacional, 2021)





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