Por que a terapia não é luxo, é sobrevivência
- Julio Cesar Picelli
- 4 de nov.
- 4 min de leitura
Atualizado: 4 de nov.
Quando o corpo fala o que a alma silencia

Aviso Importante
Este artigo tem caráter informativo e reflexivo, não substituindo avaliação ou tratamento médico. Sempre que houver dor física, sintomas persistentes, doenças ou qualquer alteração no bem-estar, é essencial procurar orientação de um médico ou profissional de saúde. O cuidado emocional é parte fundamental do autocuidado e contribui para uma vida mais equilibrada. No entanto, o acompanhamento médico, tanto preventivo quanto curativo, continua sendo indispensável para um bem-estar completo e integrado.
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Dias atrás, recebi uma mensagem curta de uma paciente, quase trivial, mas carregada de uma verdade que me atravessou profundamente:
"Oi, Julio. Estou passando pra te avisar que a Eva foi internada. Ela passou mal ontem à noite."
As linhas seguintes vieram com o peso do óbvio que ninguém quer enxergar.
Eva vinha se aborrecendo com sua vida difícil, guardando tudo para si, silenciando a dor, tentando “dar conta” de um cotidiano pesado até que o corpo falou o que a alma já gritava há muito tempo.
E o mais doloroso não é apenas o diagnóstico e a internação. É perceber que, muitas vezes, chegamos ao limite do corpo porque não suportamos mais o peso do que sentimos, mas insistimos em acreditar que terapia é um gasto desnecessário. Que “é coisa de quem tem tempo ou dinheiro sobrando”.
O preço de não se escutar
Na conversa que minha paciente comenta:
"Ao tentar economizar alguns reais por semana, Eva acabou pagando com a própria saúde, internada por conta de um sofrimento emocional não cuidado."
É uma frase dura, mas real. Quantas vezes adiamos o cuidado com o emocional porque “não dá para gastar agora”? Quantas vezes nos iludimos acreditando que o corpo aguenta o que o inconsciente tenta elaborar?
Na prática clínica, vejo isso acontecer o tempo todo: o corpo se torna o porta-voz daquilo que o sujeito não consegue simbolizar.
A dor reprimida vira sintoma. A palavra calada vira tensão. A raiva contida vira pressão alta.
E o amor não dito, o desejo reprimido, o medo não enfrentado… tudo isso encontra um modo de emergir, mesmo que às custas da saúde física.
Freud dizia que o sintoma é um compromisso entre o desejo inconsciente e a censura do eu. Ou seja, o corpo fala quando a palavra é negada.
A arte de admitir que não sabemos lidar
Outro trecho da conversa minha paciente pontua:
“Eva não soube lidar. E a terapia ensina a gente a lidar.”
Essa frase resume o que há de mais essencial na prática terapêutica. Ninguém entende como funciona o aprendizado para lidar com o sofrimento, com a perda, com o amor, com a culpa, com o tempo, com os filhos, com a própria solidão.
A terapia não é um manual de respostas, é um espaço para aprender a escutar o que sentimos e ressignificar o que vivemos.
O psicanalista não dá conselhos. Ele sustenta o silêncio para que o sujeito possa se escutar.
É um espelho neutro, um palco sem julgamento, onde o eu pode desmontar suas defesas e ensaiar novos modos de existir.
O mito do “tá todo mundo esgotado”
Em meio à conversa, minha paciente deixa escapar, num tom de admiração e leve desabafo:
Julio… todo mundo tá ficando meio perdido? Parece que todo mundo tá precisando de terapia mas ninguém se preocupa em realmente procurar ajuda.
Vivemos uma época em que o emocional virou epidemia silenciosa. Ansiedade, exaustão, insônia, crises de pânico, são sintomas sociais, não apenas individuais.
As pessoas estão cansadas, praticamente esgotadas, tentando cumprir papéis e expectativas que as afastam de si mesmas.
A psicanálise não promete cura rápida, mas oferece algo mais profundo: a chance de compreender o que se repete, de escutar o que se recalca, de transformar o que antes só doía.
É um caminho de autoconhecimento que exige coragem, a mesma coragem que Eva talvez não tenha tido tempo de exercitar.
Admitir é o primeiro passo
Um dos trechos mais forte da conversa foi quando minha paciente pontuou:
“Para mim, tudo começou a mudar no dia em que admiti que, aos 21 anos, eu não sabia lidar com muitas coisas. Se tivesse tido acompanhamento naquela época, talvez tivesse feito escolhas diferentes. Mas o importante é saber que ainda dá pra viver com qualidade daqui pra frente.”
Admitir que precisamos de ajuda é, paradoxalmente, o gesto mais maduro que podemos fazer. É um ato de liberdade. Porque enquanto negamos o sofrimento, ele nos domina.
Mas quando o nomeamos, começamos a transformá-lo.
Entre o preço e o valor
É curioso pensar: uma sessão de terapia talvez custe o mesmo que uma calça nova, um jantar, uma garrafa de vinho. Mas o que compramos com isso é tempo de escuta, é saúde emocional, é prevenção.
Talvez a grande questão não seja o preço da terapia, mas o valor que damos à própria vida.
Porque cuidar da mente não é luxo, é sobrevivência.
E quando a alma adoece, o corpo acaba pagando a conta.
Eva é um personagem fictício, criado a partir de uma conversa real com uma paciente. A história foi adaptada para este artigo, com todas as identidades preservadas e autorização prévia da paciente.
Julio Cesar Picelli
Psicanalista Clínico | Escritor e Palestrante sobre Psicanálise, Trabalho e Sociedade





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