O que Hamlet, Madonna e você têm em comum?
- Julio Cesar Picelli
- 25 de out.
- 3 min de leitura
Desejo, conflito e identidade.

Há mais de quatrocentos anos, Shakespeare colocou na boca de Hamlet uma das perguntas mais poderosas da humanidade: “Ser ou não ser, eis a questão.” Séculos depois, Madonna reinventou essa mesma dúvida em forma de atitude, provocação e reinvenção constante. Entre o príncipe melancólico e a rainha do pop, há algo que também pulsa em cada um de nós: o conflito entre o que somos, o que desejamos ser e o que o mundo espera que sejamos.
Em Hamlet, o dilema é existencial. Ele hesita, questiona, teme. Seu desejo se choca com as normas, a culpa e o peso da moral. É a luta entre o impulso de agir e a necessidade de pensar, entre o sujeito do desejo e o sujeito da lei. Em Madonna, o dilema é performático. Ela desafia convenções, muda de pele, provoca e se reinventa como quem grita: “Posso ser tudo o que quiser, e ainda assim continuar sendo eu.”
E nós? Estamos entre esses dois polos. Queremos ser livres, mas tememos o preço da liberdade. Queremos nos reinventar, mas também buscamos aceitação. Vivemos o mesmo paradoxo: o desejo de autenticidade e o medo da rejeição.
Na leitura psicanalítica, esse conflito é o coração da identidade. O “eu” não nasce pronto. Ele é tecido nas relações, no olhar do outro, nas expectativas que nos moldam. Desde cedo, aprendemos o que é “ser bom”, “ser bonito”, “ser produtivo”, “ser desejável”.
Mas, em algum ponto da vida, seja numa crise, numa perda, numa mudança de rumo, algo começa a ranger. Aquilo que parecia seguro se torna estreito demais. E surge a pergunta:
“Quem eu sou, afinal, quando não estou tentando agradar ninguém?”
Hamlet travou essa batalha internamente, paralisado entre a ação e o pensamento. Madonna fez o movimento oposto: transformou a dúvida em expressão, a angústia em arte, o conflito em reinvenção. Ambos, cada um à sua maneira, encarnam o drama humano de quem busca sustentar o próprio desejo em um mundo que constantemente tenta nos dizer o que devemos ser.
Na clínica psicanalítica, esse mesmo drama aparece diariamente. Pessoas que chegam dizendo:“Não sei mais o que quero”, “Perdi a vontade”, “Não me reconheço”. O sofrimento não está apenas na falta de respostas, mas na dificuldade de suportar o vazio, esse espaço entre o que já fomos e o que ainda não conseguimos ser. O vazio, no entanto, é fértil. É nele que o desejo reaparece, se reconfigura e encontra novos caminhos. É o espaço onde Hamlet poderia finalmente agir e onde Madonna continua dançando.
Em última instância, o que Hamlet, Madonna e você têm em comum é o mesmo motor que move a humanidade:
"O desejo de existir com verdade"
E isso exige coragem, a coragem de se escutar, de se contradizer, de se perder um pouco para se encontrar de outro modo.
A psicanálise não oferece respostas prontas. Ela oferece escuta. Um espaço onde você pode, sem máscaras, descobrir o que realmente te move,e talvez, pela primeira vez, dizer “Eis a minha questão. E eu escolho ser.”
Julio Cesar Picelli - Psicanalista Clínico | Escritor e Palestrante sobre Psicanálise, Trabalho e Sociedade
Bibliografia
Shakespeare, William. Hamlet, Príncipe da Dinamarca.
Freud, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização (1930).
Lacan, Jacques. Os Escritos e Seminário, Livro 11: Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise.
Jung, Carl Gustav. O Homem e seus Símbolos.
Bauman, Zygmunt. Modernidade Líquida.
Madonna (Ciccone, Madonna Louise). Sex (1992) e entrevistas ao longo da carreira..





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