O preço de ser diferente
- Julio Cesar Picelli
- 5 de out.
- 5 min de leitura
A história de Pedro e a coragem de buscar seu verdadeiro EU e o direito de existir sem máscaras.

Pedro e o espelho do silêncio
Nasceu em um tempo em que ser diferente tinha um preço alto. Décadas de 1960 e 1970, marcadas por silêncios e repressões, não ofereciam espaço para uma criança que não se encaixava nos padrões de masculinidade esperados. Pedro, nome fictício de um caso clínico que uso aqui, cresceu sentindo que havia algo em si que não correspondia às expectativas da família, da escola e da igreja. O simples fato de se sentir diferente já bastava para despertar olhares de julgamento, palavras cortantes e uma sensação constante de inadequação.
Na infância, seus desejos eram reprimidos antes mesmo de serem compreendidos. Os brinquedos que queria, as brincadeiras que o encantavam, os gestos que surgiam naturalmente, tudo era observado com atenção crítica, pronto para ser corrigido. Aquele olhar normativo, quase invisível, o ensinou cedo que “ser ele” não era permitido. Assim, Pedro aprendeu a sorrir quando não queria, calar quando desejava falar, esconder quando a vontade era mostrar. Criou defesas, personagens e máscaras que o protegiam por fora, mas o feriam por dentro.
A escola não foi refúgio. Amigos podiam ser porto seguro, mas também fonte de exclusão. A identidade de Pedro se construiu na tensão entre o desejo de ser aceito e o medo de ser rejeitado. O ideal de ser forte, correto e dentro das normas era, na verdade, um modo de sobrevivência. A vergonha, a culpa e a sensação de estar em dívida com os outros moldaram sua subjetividade. Como tantos, ele acreditava que só teria valor se fosse aquilo que esperavam dele.
O peso do olhar do outro
Freud já apontava que o eu é sempre atravessado pelo olhar do outro, aquele que nos forma, mas também nos aprisiona. Lacan ampliou essa ideia, mostrando que a identidade é uma construção simbólica: somos o reflexo de desejos, expectativas e discursos que nos antecedem. Pedro viveu aprisionado nessa teia. Seu desejo, moldado pelo olhar social, tornou-se um espelho distorcido.
Nos anos 1980, com a epidemia da AIDS, o medo e o preconceito ganharam novas formas. Pedro viu amigos morrerem, amores silenciados e afetos escondidos pela vergonha. A cultura do medo reforçava o discurso de que amar diferente era errado e a repressão moral transformava o desejo em culpa. Paradoxalmente, foi nesse tempo de dor que começou a surgir o germe da resistência: a vontade de existir sem pedir desculpas.
Mas o preço da sobrevivência era alto. Por trás da imagem de um suposto sucesso, o profissional respeitado, o amigo solícito, o filho exemplar, havia um homem dividido entre o que mostrava e o que escondia. Sustentar duas vidas o consumia. O corpo resistia, mas a mente gritava.
Quando a dor cala o corpo, o corpo grita
Foi preciso um pequeno acidente de carro e um réveillon solitário para que o grito interno se tornasse audível. Pedro percebeu que a fuga não tinha mais para onde ir. A distância, as viagens, o trabalho, nada silenciava o que vinha de dentro. Era a hora de olhar para o que evitava há décadas.
Ele decidiu buscar terapia. Mas não foi fácil. A primeira resistência surgiu na forma mais comum: “terapia é cara, não preciso disso agora.” O mito de que cuidar da mente é luxo e não necessidade é um reflexo de uma sociedade que só considera válida a dor quando ela se torna insuportável, patológica ou física.
A contradição é gritante: investimos em bens, estética e performance, mas relutamos em investir em algo que pode salvar a própria existência.
Pedro compreendeu que a terapia não precisa ser prescrita por um médico nem reservada para crises graves. Ela é, antes de tudo, um trabalho construtivo, uma forma de evitar que as dores e traumas do passado gritem mais tarde na forma de sintomas, doenças ou relacionamentos adoecidos.
A libertação do “eu” desenhado pelo outro
Na análise, Pedro começou a se desfazer das identidades impostas: o homem forte, o profissional incansável, o filho obediente. Percebeu que essas figuras eram, em parte, defesas criadas para ser aceito. A psicanálise o ajudou a identificar o quanto sua vida fora guiada por desejos que não eram realmente seus, mas projeções do Outro, da cultura, da família, da moral.
Freud dizia que “onde estava o id, deve advir o ego” e Pedro começou a fazer esse movimento: reconhecer as forças inconscientes que o comandavam e reposicionar o próprio eu no centro da experiência.
Lacan falaria que Pedro aprendeu a “assumir seu desejo”, a se responsabilizar por ele, sem vergonha, sem culpa. Adler lembraria que a vida se torna significativa quando o sujeito entende seu propósito e o transforma em contribuição ao mundo. E Robert Adams diria que o caminho da libertação não é negar o ego, mas reconhecê-lo sem se confundir com ele.
A terapia se tornou, para Pedro, um espaço de resgate do ego aprisionado no olhar alheio. Ali, ele pôde descobrir o que realmente era dele e o que vinha do outro. Com o tempo, entendeu que o sucesso que buscava não era sinônimo de realização, e que o fracasso podia ser o verdadeiro professor da vida.
A mente também adoece e precisa de cuidado
Pedro aprendeu, talvez tardiamente, que a mente precisa de cuidado tanto quanto o corpo. Se o check-up médico é rotina, por que o cuidado emocional ainda é tabu?Negar a dor psíquica é como ignorar uma ferida aberta: ela pode cicatrizar por fora, mas continua infeccionando por dentro. Cuidar da mente é um gesto ético de amor-próprio. É reconhecer que a dor emocional também é real, que o sofrimento invisível é tão legítimo quanto uma fratura. E mais: é um ato de responsabilidade porque o que não é tratado tende a se repetir, seja nos sintomas, nas relações, ou no corpo.
Conclusão — Terapia: o lugar onde a verdade encontra o sujeito
A história de Pedro é a de muitos. Aquele menino que cresceu com medo de ser quem era precisou de décadas para entender que o que o feria não era sua diferença, mas o olhar que o julgava por ela. A terapia foi o espaço onde ele pôde, finalmente, se escutar sem medo, reencontrar o próprio desejo e integrar-se numa vida mais saudável, livre e verdadeira.Terapia não é luxo. Não é capricho, nem última alternativa. É um espaço de libertação, prevenção e reconstrução.Ela não apaga o passado, mas nos ensina a habitá-lo sem dor.
A vida começa a mudar quando paramos de fugir de nós mesmos!
Bibliografia:
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização.
LACAN, Jacques. Escritos.
ADLER, Alfred. O sentido da vida.
ADAMS, Robert. Silence of the Heart.
BAUMAN, Zygmunt. Medo líquido.
HAN, Byung-Chul. A sociedade do cansaço.





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